Wednesday, November 08, 2006

Regiões Demarcadas. Colete de Salvação ou Colete de Forças?


A questão, em voz alta e assim de repente, também se me perfila como incomodativa. Situa-se algures entre o "absurdo" e o "porque não pensar nisto".
Não sendo meu objectivo verter presunçosas teses sobre a temática, não deixa de me parecer interessante discorrer sobre ela.

Para além de toda a filosofia cultural, geográfica, histórica, sentimental, religiosa, etc etc que lhe está associado, o vinho é, na essência , um produto alimentar. Nesta condição, deve apresentar-se ao consumidor em irrepreensíveis condições físicas (a embalagem, o rótulo, a rolha, etc.),químicas ( acidez volátil, sulfuroso, extrato seco, álcool, etc.) e gustativas (o aspecto, os aromas, os sabores).
Garantidas que estejam estas premissas na sequência da actuação dos diferentes organismos reguladores (IVV, Comissões Vitivinícolas, etc) porque não pensar o vinho como um produto feito para garantir a máxima satisfação do consumidor, (o vinho feito pelo enólogo e para o enólogo é outra louça), estando implícita nesta obrigatoriedade alguma desregulamentação do sector e, quiçá, o repensar do que deve ser entendido como "região demarcada".
Entrariamos assim num outro universo, com outras possibilidades. Por exemplo, juntar castas de diferentes regiões e mesmo de diferentes países, desde que o resultado final fosse um vinho que de facto trouxesse algo de novo aos consumidores - novas nuances cromáticas, novos aromas, novas sensações no palato. Sentir de uma vez por todas esse tal de umami!
E não. Não me acenem com "bom, mas isso de facto já existe. São os chamados vinhos de mesa sem certificado de origem". Não é a mesma coisa. Estes, são vinhos produzidos em qualquer tipo de solo, sem limite máximo de rendimento/ha, sem controlo efectivo aos adjuvantes usados na vinificação, com critérios analíticos e gustativos demasiado elásticos.
Falo de outra coisa, falo de vinhos que se poderiam afirmar apenas pela marca, pelo produtor, pela qualidade intrínseca que revelam, mais do que pelo facto de serem produzidos nesta ou naquela região, com este ou aquele encepamento. As castas "autorizadas" ou "recomendadas" seriam aquelas que o produtor/enólogo entendessem e não aquelas que a legislação permite para cada região. (Coisa que de resto até já se fez, subliminarmente, com resultados indesmentíveis desde 1952. O que foi o Barca Velha desde esse ano pioneiro, até à decada de 80 senão um vinho de mesa sem qualquer controle regulamentador? Alguém se importou com as castas? Alguém se importou com os rendimentos por hectare? Alguém se importou com os métodos de vinificação? Não, porque de facto o resultado foi soberbo.
Não é uma hipócrisia admitir em algumas regiões demarcadas nacionais, castas como Gewurztraminer, Chardonnay, Arns Burguer, Cabernet Sauvignon e outras, que nada trazem de novo aos vinhos (ou melhor, trazem mas é para pior) e não abrir caminho a castas que de facto poderão corrigir desiquilibrios estruturais nos mostos mesmo que não sejam legalmente admissíveis?
Não seria preferível, por exemplo, permitir (legalmente...) o cultivo de uma qualquer casta branca da Região dos Vinhos Verdes na Região Demarcada do  Alentejo, ou no Ribatejo ou no Douro, casta essa que conferiria ao mostos/vinhos uma acidez fixa mais elevada, em vez de anualmente se adicionarem toneladas e toneladas de ácido tartárico (por vezes acima do limite de 1,5 g/l permitido por lei),aqui a ali temperado com sulfúrico, aos mostos de pH alto? Se o resultado fosse um vinho de qualidade superior, porque se impede, pela legislação, que isto aconteça?

O vinho produzido em países onde não se fala de Regiões Demarcadas - Argentina, EUA, Chile, Austrália, Nova-Zelândia, África do Sul,... deixa de ser vinho? Porque ganham tantos prémios internacionais? Trata-se apenas de marketing? Creio que não. Independentemente da formatação/globalização efémera de gostos, aferidos às brevemente esgotadas Cabernet Sauvignon e Chardonnay, há de facto uma qualidade íntrinseca nos vinhos destes países produtores não europeus. Testemunho: bebi há meses no Brasil um tinto nativo de Pinot Noir do estado do Rio Grande do Sul que me revirou os olhos.
Mas abordemos o discorrer por outro azimute. Muitas das castas de hoje, por efeitos dos aturados e meritórios trabalhos de selecção massal e clonal de que foram alvo, têm um comportamento fisiológico muito distinto do material original. Logo, dão origem a vinhos que, aos pouco, se afastam do perfil típico do vinho da respectiva região demarcada. O desvio será maior se introduzirmos uma casta "estranha" mas beneficiadora numa região demarcada ou se levarmos a selecção das castas indígenas ao extremo? Atentemos por exemplo à recente alteração da legislação que permite o aumento do teor alcólico dos Vinhos Verdes. Descontadas as responsabilidades imputadas aos verões atípicos que se têm feito sentir, o que é isto senão uma adaptação de novos tempos a novas realidades? O vinho perderá por isso? Humm.... não creio.
Mais ainda. Parece-me muito mais assertivo classificar os vinhos (Vinho de Mesa, Vinho Regional, Vinho IPR ou Vinho DOC) ano a ano, produtor a produtor, do que classificá-lo como isto ou aquilo antecipadamente, apenas porque está dentro ou fora de uma região demarcada. Seria uma espécie de prolongamento do critério "vintage" aplicado a todos os vinhos. No ano A o vinho poderia ser DOC, mas no ano A+1 o mesmo vinho poderia ser apenas Vinho de Mesa. Seria o critério "qualidade anual" e não o critério (estafado, a meu ver) "região demarcada" que estaria na base da atribuição da classificação.
O que é a tipicidade de um VQPRD nado de castas recomendadas, exaustivamente regulamentado, produzido, analisado, degustado, certificado, premiado, se entretanto se permite a sua madeirização com a mais "típica" madeira (com chofa "à la carte") francesa, americana ou de um qualquer país do leste europeu, até ao extremo do enjoativo e corrector de maleitas organolépticas? O que é a tipicidade se se permite a inoculação de bactérias e leveduras seleccionadas em regiões tão "típicas" com a Alemanha, a Espanha, ou a Austrália?
Andamos ou não a brincar ao faz-de-conta-que-o-vinho-é-típico-porque-veio-de-uma-região-demarcada?

5 comments:

Anonymous said...

A mim parece-me fazer todo o sentido falar em regiões demarcadas, se elas, por si só funcionarem como um sistema de controlo de qualidade.

Hoje em dia, é cada vez mais fácil falsear as coisas.

Se estamos a caminhar para os DOP's no azeite, nos queijos, nos enchidos... porque não há-de o vinho continuar a ter uma denominação de origem controlada?

Um abraço,
Paulo Silva
http://vinhodacasa.blogspot.com

Viana Oliveira said...

Caro Paulo Silva

Obrigado pelo comentário, antes de tudo...
Com a questão "faz sentido falar em regiões demarcadas?" não pretendo pôr em causa a necessidade do controle efectivo sobre o produto "vinho", antes pelo contrário.O que a mim me parece incompreensível é haver uma legislação (na europa)que impeça, por exemplo, que uma casta espanhola seja utilizada num vinho portugues de uma qualquer região demarcada, mesmo que isso signifique uma clara melhoria do produto final? O que se pretende não é desregulamentar para baixar a qualidade, é o oposto. Deve desregulamentar-se para permitir o aparecimento de vinhos com novos perfis. O consumidor faria a selecção natural.
No proximo post aprofundarei mais este ponto de vista.
Um brinde

Viana Oliveira said...

Olá Ricardo
Afastado que estou da enologia picarota, não poderei ser categórico, mas vou esclarecer a questão.
No restante atrevo-me a opinar da seguinte forma:também eu sou contra a desvirtualização de produtos típicos, de resto, bati-me durante 10 anos por isso...mas a realidade, para as empresas de pequenissima dimensão é mais cruel. Vivem no limbo definido entre necessidade de sobrevivência e a crueldade do mercado. O que fazer quando o produto é genuíno, tipico, de qualidade e não se vende? Não se adapta o viscoso conceito de "tipicidade" à realidade dos tempos e morre-se em pé? Como sustentar uma vitivinicultura típica se o produto não gera receitas? A viticultura e a enologia existem para quê? Para agradar apenas aos consumidores pela tipicidade do produto ou para sustentar familias de viticultores? E se, alterando a tipicidade se mantiver a actividade?

Anonymous said...

Querido amigo Viana,
Li com atenção a tua crónica. Em parte concordo, sobretudo no que diz respeito a uma maior liberdade de utilização das castas. Acima de tudo deve ser valorizada a qualidade do produto final.
Contudo, acabar com as regiões demarcadas não me parece um bom caminho, pois há que preservar as características intrínsecas de cada região, não é isso que lehes confere o carácter especial e que tanto apreciamos? Falas dos vinhos do 'novo mundo'... ok, são bons, de elevada qualidade, mas não achas que se tornam produto de uma massificação? Qual a diferença entre um Cabernet Sauvignon produzido nos EUA, ou na Austrália, ou Nova Zelândia?
Pensa nisto...
Abraço!
Filipe Forte de Faria

Viana Oliveira said...

Caro Lipinho
A massificação das castas e da uniformização dos vinhos é hoje, de facto prato do dia, sobretudo nos chamados "vinhos do novo mundo".No entanto,entre nós, dentro de algumas regiões demarcadas essas mesmas castas são até "recomendadas" .Exemplo, os vinhos DOC Távora-Barrosa ou os DOC Bairrada podem ser feitos só de Chardonnay...Isto para não falar da permissividade (em termos de castas)quase obcena que caracteriza os Vinhos Regionais.
Os VQPRD estão de facto, senão na sua totalidade em grande parte, relativamente bem protegidos (até agora...) face à invasão de castas "exóticas" e ainda bem. Mas o meu ponto de vista é outro. Porque se blindam as castas e não se blindam, por exemplo as leveduras? Ou a madeira? Ou o tipo de poda? A tipicidade de um VQPRD deve-se apenas ao binómio casta/clima?
E se um vinho da casta A de uma qualquer região demarcada,lotado com outro da casta B (casta exógena à região) resultasse num melhor produto para o consumidor? Porquê impedir isso e castrar a evolução gustativa? Esta só pode ser feita à custa da tecnologia?
Porque não um vinho de Alvarinho com Bical?
O que defendo não é a massificação desta ou daquela casta,é a possibilidade de "brincar" aos lotes de castas e deixar o consumidor decidir da melhor combinação.
Abraço